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domingo, abril 17, 2011

O banquete no deserto



O primeiro mal-entendido pode nascer da opinião de que a oração é algo de alienante, que nos afasta da vida do mundo. Porém a oração se nutre de solidão, não de isolamento, e o silêncio contemplativo é denso de palavras e de presenças. Por essa razão rejeito o verbo “retirar-me”. Ao deserto não se retira, como se fosse uma concha, ao abrigo das dificuldades que são de todos. No deserto se entra, se caminha, se imerge, assumindo a história e os problemas de todos – engajando-se e lutando contra as alienações deste nosso mundo, como sempre fiz e sempre farei.

Posso dizer que até hoje tenho buscado testemunhar que a contestação não é incompatível com a oração; de agora em diante quero testemunhar que a oração é compatível com a contestação; a oração é, na verdade, a própria essência da contestação. Porém se trata de uma antítese fictícia, seja no que me diz respeito seja no que diz respeito a esses valores em si mesmos. Porque há uma contestação contemplativa, que é a própria contestação de Cristo, nos confrontos com o seu mundo e com a sua “igreja”. A oração, na realidade, é a contestação mais profunda neste nosso mundo utilitário, em que coloca em crise não só as formas de opressão em que se manifesta mas também o modelo antropológico-cultural que exprime: um modelo essencialmente utilitarista, privado daqueles espaços de fantasia, de poesia e de gratuidade sob os quais se insere precisamente a oração.
A oração é a própria essência da contestação.


Há muitos modos de se sentir e de se viver o deserto, segundo a espiritualidade de cada um. Para mim o deserto é acima de tudo o lugar feliz do encontro com Deus e com os homens. E, acima de qualquer outra coisa, quero dar testemunho daquela alegria, que ninguém pode subtrair-nos, deixada pelo senhor Jesus por ocasião da sua ceia. Trata-se de um testemunho que – embora radicado na sofrida participação dos problemas do mundo – não penso seja fora de tempo ou de lugar, mesmo sendo nossa história assim atormentada; na verdade, precisamente por essa razão. Enquanto permanecemos cozendo no fogo brando da angústia, numa complacência narcisística que revela a estagnação da história e a incapacidade de sairmos em busca de novos climas culturais, o que é necessário, mais do que um sofrimento romântico, é um sinal de alegria e de esperança que nos demonstre que, mesmo hoje, pode-se encontrar em Deus a pacificação e a harmonia do homem. É isso: meu deserto quer ser a expressão não da desolação de um mundo que se esfacela, mas o impulso, a alegria, a esperança, a harmonia – porque não, a profecia – de um mundo novo que está às portas e que será mais próximo do que aqueles “novos céu e nova terra” prometidos pelo Apocalipse: um mundo que tem necessidade de entusiasmo e de engajamento mas também de solidão e de silêncio, na medida em que esses permaneçam participativos e engajados.

Meu desejo, por fim, é de demitologizar a figura do eremita; porque acredito que a “normalidade” é um grande valor, a ser perseguido em todas as situações, e que a renúncia a modos de vida excepcionais pode ser também uma forma da pobreza e da simplicidade evangélicas. Um eremita não é um misantropo do qual ninguém pode se aproximar; não é tampouco necessariamente um recluso que não possa, de vez em quando, deslocar-se e encontrar-se com as pessoas; que não possa, acima de tudo, receber quem venha compartilhar algumas horas da sua solidão e trazer-lhe a dádiva da sua amizade; mesmo porque, na verdade, a hospitalidade tem sido sempre um dom monástico. O eremita é simplesmente alguém que escolhe viver sozinho porque na solidão tem o seu momento privilegiado de encontro.

Amigos caríssimos, isto não é uma despedida, só se for para um modo mais próximo e frequente de presença. Porém, mesmo que as ocasiões de nos vermos se tornem mais raras, levo-os todos comigo e me encontrarei com vocês cotidianamente na eucaristia: ao calar do dia, na hora inquieta e dulcíssima do encontro de Emaús, em que temeríamos a noite se o Senhor não estivesse ali, com seu pão. Nessa hora íntima da ceia vocês são todos convidados à minha mesa, e ali os encontrarei a todos, e os nomearei um a um. Vocês talvez não façam ideia do quanto deve amar os homens aquele que se dispõe a estabelecer espaços somente materiais de distância entre ele mesmo e os outros. É neste amor terno e profundo que não me despeço mas vou ao encontro de vocês e os abraço, um a um, do meu posto na solidão, habitada por Deus e por vocês.

A escritora Adriana Zarri (1919-2010), a primeira teóloga italiana,
na carta que escreveu aos amigos explicando sua decisão de adotar a vida de eremita.
De 1975 em diante Adriana viveu sozinha em casas sempre isoladas, com seu gato,
escrevendo livros e romances e recebendo ocasionalmente os amigos.
Na expectativa da própria morte, escreveu o seguinte:

«Não me vistam de negro:
é triste e fúnebre.
Não me vistam de branco:
é soberbo e retórico.
Vistam-me
de flores amarelas e vermelhas
e com asas de pássaro.
E tu, Senhor, olha para as minhas mãos:
Talvez haja uma coroa,
Talvez
tenham colocado entre elas uma cruz.
Pois erraram.
Nas mãos tenho folhas verdes
E acima da cruz
a tua ressurreição.
E sobre a tumba não me ponham mármore frio
Gravado com as mentiras de sempre
Que consolam os vivos.
Deixem só a terra:
Que escreva a primavera
Uma epígrafe de erva.
E dirá
que vivi
que aguardo
E escreverá o meu nome e o teu,
Unidos como dois botões de papoula.»

***

«Non mi vestite di nero:
è triste e funebre.
Non mi vestite di bianco:
è superbo e retorico.
Vestitemi
a fiori gialli e rossi
e con ali di uccelli.
E tu, Signore, guarda le mie mani.
Forse c’è una corona.
Forse/ci hanno messo una croce.
Hanno sbagliato.
In mano ho foglie verdi
e sulla croce,
la tua resurrezione.
E, sulla tomba,
non mi mettete marmo freddo
con sopra le solite bugie
che consolano i vivi.
Lasciate solo la terra
che scriva, a primavera,
un’epigrafe d’erba.
E dirà
che ho vissuto,
che attendo.
E scriverà il mio nome e il tuo,
uniti come due bocche di papaveri»


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